Especialistas rio-pretenses avaliam as consequências psicológicas do ‘cancelamento’, tema abordado nos últimos dias pelos participantes do BBB 21 e pelas redes sociais.
Um dos assuntos mais debatidos nas redes sociais nos últimos dias, a nova edição do Big Brother Brasil, da Rede Globo, tem trazido à tona o termo ‘cancelamento’. O gatilho inicial foi quando o ator Lucas Penteado se envolveu num mal-entendido e acabou sendo ‘cancelado’ por boa parte dos participantes, principalmente pela rapper curitibana Karol Conká. O banimento foi tão intenso que resultou na desistência de Lucas em continuar no programa.
A cantora, que acabou se excedendo em suas palavras, tom de voz e atitudes para com ele, causou uma onda de indignação dentro e fora da casa, principalmente no episódio em que ela exigiu que ele saísse da cozinha para que ela pudesse almoçar.
Para muitos fãs do programa, o ápice que levou à saída de Penteado foi quando, em uma das festas, após beijar o participante Gilberto, ele revelou que era bissexual e relatou sobre todas as dificuldades que tinha para se assumir em função de sua trajetória e origem. Na ocasião, o participante chegou a ser acusado de querer se aproveitar da causa LGBTQI para se fazer de vítima e se promover dentro da casa.
Diante de tudo isso, Karol Conká passou de canceladora dentro da casa a cancelada aqui fora. Por conta de seu comportamento, a cantora tem sido julgada nas redes sociais, perdeu contratos, seguidores e até patrocínios.
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De onde vem o termo?
A ‘cultura do cancelamento’ é um movimento que surgiu há alguns anos na internet e funciona como uma espécie de boicote, no qual pessoas (famosas ou não) e marcas que falam ou fazem coisas consideradas erradas ou condenáveis perante a sociedade são expostas por um grupo nas redes sociais como forma de punição, de modo que outras sejam influenciadas a engajar este’ cancelamento’.
O termo se tornou popular a partir de 2017 depois de ganhar relevância com movimentos de denúncia como o #MeToo, ou #EuTambém, cujo objetivo era denunciar casos de assédio e abuso sexual. Desde então, para ser cancelado não é mais necessário ter cometido um crime. Basta uma expressão equivocada, um termo preconceituoso, um comportamento inadequado ou até mesmo a omissão e silêncio perante algum caso de injustiça.
Para Eduardo Thomaello, especialista em marketing digital e gerenciamento de redes sociais, as raízes da cultura do cancelamento sempre estiveram presentes ao longo da história humana e esta é apenas outra variação. “As sociedades têm punido as pessoas por se comportarem fora das normas sociais percebidas durante séculos, e as mídias sociais aumentaram o poder ao amplificar coletivamente as vozes de pessoas marginalizadas, permitindo que estas se unam em grupos para responsabilizar instituições e indivíduos, além de desafiar as narrativas dominantes”, explica.
De acordo com o especialista, em grupos, essas vozes ficam mais altas do que antes, o que gera “consequências inspiradoras ou sombrias”. “Compartilhamos tanto, que às vezes temos a tendência de dizer coisas através das redes sociais que talvez não diríamos se estivéssemos cara a cara com alguém. Reconhecer o erro e pedir desculpas é a melhor solução, mas antes disso é preciso entender por que o que fizemos ou dissemos machucou outras pessoas, para não correr o risco de reincidência e ter que se desculpar novamente no futuro”, orienta.
Segundo o psicólogo Alexandre Felipe de Oliveira, nenhuma forma de cancelamento é benéfica, pois gera o bloqueio da possibilidade de refletir a fundo sobre as questões envolvidas analisando todas as partes.
Para ele, mesmo quando há comportamentos reprováveis, é necessário que haja a possibilidade de reflexão sobre esses contextos sem anular o discurso de todas as partes. “A atitude do cancelador demonstra, muitas vezes, a dificuldade que o mesmo tem de lidar com o diferente, não encarando a frustração de forma saudável. Já para o cancelado, essa censura faz com que, em grande parte, haja a dificuldade de entender o ponto de vista do outro de forma natural e acolhedora, uma vez que tem-se como resposta comportamentos agressivos e excludentes”, enfatizou o psicólogo, que ressaltou que o ser humano tem a necessidade de ser visto e ouvido, até mesmo para fortalecer a sua identidade.
“Quando há uma condenação que retira a sua voz e sua realidade, a saúde mental pode ser diretamente afetada, causando reflexos como ansiedade generalizada, dores no corpo, compulsões, depressão, pânico, automutilação, e até mesmo o risco de tirar a própria vida”, completou o profissional, que sugere o acompanhamento psicológico para que o indivíduo possa reconhecer suas fraquezas e saiba lidar com os pontos a serem melhorados.
De acordo com a psicóloga Ananda Santos, trazer reflexões sobre algo que fere outras pessoas é muito importante e pode proporcionar transformação, mas deixa de ser benéfico quando o discurso e as ações também ferem de maneira desmedida a pessoa cancelada como forma de punição. “Quando nos vemos o tempo todo sendo criticados e atacados, essa mesma instância tende a nos punir e, por consequência, surgem os pensamentos negativos e depreciativos que podem gerar comportamentos autodestrutivos”.
Ainda segundo Ananda, quando o individuo passa a reconhecer suas falhas, é possível que esbarre nos próprios limites emocionais para reparar o que foi feito, e a culpa gerada terá consequências no seu psiquismo.
“Nessa tentativa de reparação é provável que possa cometer novos erros, por estar inseguro demais e ter a necessidade de agradar. Abrir um diálogo e dar a chance da pessoa ‘cancelada’ se expressar ajudaria esse processo a ser mais coerente com o que ambos esperam”, orienta.
Em relação ao comportamento de Karol com Lucas, que foi classificada por muitos internautas como manipuladora e teve seu modo de agir avaliado como violência psicológica, a psicóloga explica que o ato é caracterizado por agressões verbais e atitudes que visam diminuir a autoestima da vítima, silenciando sentimentos, controlando decisões e degradando comportamentos e crenças.
A profissional explicou também que pessoas manipuladoras podem se enquadrar no perfil de transtorno de personalidade e podem também se utilizar da manipulação e de comportamentos e falas de quem está ao seu redor para se beneficiar e preencher lacunas emocionais. “Ao demonstrar uma elevada confiança em suas atitudes e falas, existe ali alguém que esconde a todo custo seus defeitos e inseguranças. É como se fosse uma máscara que a pessoa assume para si”, esclareceu Ananda.
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Além da representatividade.
Desde sua estreia em 2002, essa é a edição do Big Brother Brasil com o maior número de participantes negros. Para Darok Viana, presidente do Conselho Afro de Rio Preto, a tônica das principais discussões no programa envolve esses participantes e, consequentemente, chama a atenção para questões de igualdade racial. “Pessoas como Karol Conká, Nego Di, Projota e Lucas Penteado ganharam visibilidade por abordar a temática racial e/ou social ao longo de suas carreiras, mas isso não as torna porta-vozes de toda a negritude”, esclarece.
Viana ressalta que existe um costume social de considerar cada negro o porta-voz e representante do movimento como um todo, se esquecendo que pessoas negras são plurais, pensam, agem e erram de forma individual. “Colocar um indivíduo negro nesse lugar de representação de um todo é, também, uma maneira de desumanizar, e atribuir as falhas individuais dessas pessoas a um movimento coletivo é desrespeitoso com personalidades e lutas históricas. Aqui fora, na luta antirracista diária, o foco não é a disputa por R$1,5 milhão, enquanto dentro da casa, o objetivo não é a construção de políticas públicas”, reforça.
Ainda de acordo com Viana, o comportamento dos participantes negros na casa não deve ser classificado apenas como questão de cor/etnia, mas, sim, de personalidade, maturidade e saúde psicológica. “As atitudes de manipulação, destempero e distorção da realidade de Karol Conká, por exemplo, não podem ser vistas como representação de todo o feminismo negro; logo, não há uma desvalorização da luta do movimento. Por outro lado, a postura tomada por muitos de atribuir seus comportamentos a uma característica do feminismo negro é uma postura que pode ser considerada racista e que reforça o estereótipo da mulher negra histérica”, disse o rio-pretense, que destacou que é necessário diferenciar ídolos de lideranças.